O texto publicado abaixo é a primeira parte de um
relatório sobre questões artísticas e culturais
preparado por David Walsh para a reunião ampliada do IEB
(WSWS Editorial Board), que aconteceu em Sidney de 22 a 27 de
janeiro de 2006. Walsh é membro do IEB e Editor da área
de Artes do WSWS.Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente
em inglês,no dia 21 de março de 2006.
Em um sentido mais geral, a situação atual da
arte é dominada por duas tendências: por um lado,
o desenvolvimento em vasta escala das condições
objetivas para uma cultura artística global que iluminará,
deleitará e envolverá massas de seres humanos, enriquecendo
e finalmente alterando suas vidas de uma forma inimaginável;
por outro lado, o decadente estado das relações
sociais existentes trabalha na direção oposta, ameaçando
a humanidade com a possibilidade de guerras e ditaduras, ameaçando
a vida cultural existente e suprimindo o surgimento de novas formas
e idéias.
O ataque à arte, a parte mais complexa da cultura, acontece
por meio de ataques descarados à liberdade artística
e tentativas de censuras em muitos lugares do mundo (EUA, China,
Inglaterra, Turquia, Irã, Arábia Saudita, Sri Lanka,
Índia, entre outros lugares), incluindo o incentivo das
forças mais reacionárias, como as fascistas ou fundamentalistascristãs,
hindus, islâmicas. O ataque também vem da comercialização
e trivialização da arte e da corrupção
de setores da intelligentsia, tanto daqueles que são
abertamente de direita quanto os que se dizem de esquerda.
Qualquer análise empírica da cultura e da arte
global está fora de cogitação. Além
dos problemas históricos-científicos que são
colocados por tal operação, algumas estatísticas
ajudarão a dimensionar a presente situação
cultural global de maneira clara.
O capitalismo levou a população mundial ao fracasso
no âmbito da cultura e educação, junto com
a possibilidade de criar uma vida decente para si mesmo. Apesar
de tudo, a população aumentou e a expansão
da economia mundial produziu um salto no número de adultos
alfabetizados. O quadro dobrou de 1970 para 1998, de 1.5bi para
3.3bi.
O número de livros é surpreendente. Cerca de
1.000.000 títulos são publicados a cada ano mundialmente.
Uma estimativa sugere que exista no mundo um estoque de livros
de aproximadamente 65 milhões de títulos. A Amazon.com
afirma ter 4.000.000 de títulos. Em 2000, eram 158.000
os títulos de periódicos únicos mundialmente,
e o número total de publicações em série
ultrapassava os 600.000 pelo mundo.
Cerca de 1.1 bilhões de livros foram vendidos nos Estados
Unidos em 1999. O número total de revistas americanas circulando
anualmente excede os 500 milhões.
O processo de produção e consumo de livros e
periódicos é permeado por vastas desigualdades,
com os EUA produzindo perto de 40% de todo material impresso no
mundo, enquanto que continentes inteiros estão esfomeados
por informação e cultura.
Este fato levanta a questão: o capitalismo criou, ou
é capaz de criar, uma cultura global harmoniosa?
Nas duas últimas décadas a troca de bens culturais
cresceu exponencialmente. Entre 1980 e 1998, a troca mundial anual
de material impresso, literatura, música, artes visuais,
cinema, fotografia, rádio, televisão, jogos materiais
esportivos subiu de 95.3 bilhões de dólares para
quase 400 bilhões de dólares. De qualquer forma,
apenas 3 países (Reino Unido, EUA e China) produziram 40%
dos produtos desta toca mundial em 2002, enquanto América
latina, região do Caribe, Oceania e África juntas
(cerca de 1 bilhão e meio de pessoas) acumularam menos
que 4%, de acordo com informe do Instituto de Estatísticas
UNESCO.
Dados de 2001 revelam que 5 países (Índia, China-Hong
Kong, Filipinas, EUA e Japão) produzem mais que 200 filmes
cada um. A Índia anualmente lança 700 ou mais filmes;
a indústria de filmes Filipina conseqüentemente entrou
em colapsosua produção de 240 filmes caiu
para 40 por ano. Os EUA produzem 400 ou mais filmes por ano, a
indústria japonesa produziu cerca de 240 por ano durante
a década de 90. Para China, veja abaixo.
Em 2001, 25 países, principalmente na Europa e na Ásia,
produziram entre 20 e 199 filmes. 72 países produzem entre
1 a 19 filmes, e 88 países no total de 190 não tem
nenhuma indústria de filme.
Em outras palavras, 160 de 190 países em 2001 produziram,
cada, menos que 20 filmes; África Subsaariana produz, no
total, apenas 42 filmes por ano. O Vietnã, com 83 milhões
de habitantes, tem apenas de 60 telas de cinema. O Brasil, com
170 milhões de pessoas, tem apenas 2.000. Os EUA, 36.700.
Os estúdios de Hollywood têm 85% das salas de
cinemas mundiais, com picos acima e 90% em alguns paises da Europa,
África e América Latina. Os ganhos de Hollywood
caíram 6% ($500 milhões) em 2005. Na Europa os ganhos
também caíram. Isto é atribuído, em
parte, ao alto preço das entradas, à economia geral,
ao mercado dos DVDs, televisão a cabo - mas, também,
à baixa qualidade dos filmes. A audiência está
respondendo à qualidade miserável de muitos filmes.
A indústria do entretenimento é uma através
da qual os EUA obtém um expressivo lucro. Filmes europeus
controlam apenas 1% do mercado americano. China (que permite apenas
20 filmes estrangeiros por ano), Rússia, Turquia, Índia,
França, Coréia do Sul são alguns dos países
onde a produção local ou, ao menos, filmes não-americanos,
tem uma porção significativa no mercado interno.
A indústria chinesa de filmes é agora a 3ª.
maior do mundo, em termos de ganhos, atrás de Hollywood
e da Índia, com 260 filmes feitos em 2005um aumento
de cerca de 20% (76 filmes foram feitos em 1997). Os ganhos da
indústria chinesa em 2005 foram de $248 milhões,
um aumento de 30% em relação ao ano anterior, com
outros $204 milhões ganhos em mercados além-mar.
Esse aumento de 30 porcento nos ganhos foi substancial, mas empalidece
perto do aumento de 58% de 2003 para 2004. China ainda sofre de
um numero relativamente baixo de salas de cinema e, evidentemente,
de pobreza generalizada. Em 2004, seu ganho nesse setor foi apenas
um quarto em relação ao da Coréia o Sul.
A indústria do entretenimento passou por um impressionante
processo de concentração na década de 90.
Em 1993, a renda total das cinqüenta maiores companhias de
audiovisual do mundo era de $118 bilhões. Quatro anos depois,
os sete maiores conglomerados de mídia atingiram, cada,
a mesma marca.
Em 1993, 36% das companhias eram norte-americanas, 36% da União
Européia e 26% do Japão. Em 1997, mais que 50% das
firmas eram americanas. Ou seja, o que se vê e se ouve nas
mídias mundiais são determinadas por oficiais de
sete conglomerados.
Temos que enfrentar, hoje, uma transformação
radical na situação cultural: dezenas de milhares
de periódicos na rede da internet, um enorme crescimento
nos computadores associados e tecnologias digitais, criando uma
mídia artística inconcebível décadas
atrás. Mesmo se considerarmos formas tradicionais
de arte - ficção, poesia, pintura, música,
cinema (este, tradicional no século XX), arquitetura
e dançauma explosão de escala global ocorreu.
A possibilidade de uma perspectiva alternativa para nós
foi levantada no nosso encontro essa semanaa possibilidade
de que nós vivemos durante o nascimento de um novo sistema
mundial capitalista estabilizado, onde as contradições
fundamentais da vida social foram superadas, abrindo a vista para
uma eventual prosperidade e libertação das privações
e da decadente situação da população
mundial. Se fosse realmente o caso, algo hipotético, um
desenvolvimento da liberdade deveria ser acompanhado pelo mais
franco e honesto enriquecimento da vida humana. Se chegamos perto
do limite de uma nova época, premonições
disso deveriam ter sido descobertas na arte.
Mas mais especificamente, se esta sociedade tem como fora do
real a melhoria das condições da maioria da população,
então sua arte oficial deveria estar engajada em uma tentativa
de autocrítica, explorando o que existe, expondo fraquezas
da arte e antecipando suas resoluções. Uma extraordinária
sinceridade e abertura deveria dominar, que permitiria a mais
ampla e democrática discussão da situação
humana.
Esta é a situação presente? Claramente
não. O que nós continuamos a encontrar? Um bloqueio
de condições, a exclusão de vastas massas
de pessoas e de suas vidas das considerações artísticas,
estas constantemente fantasiadas, tratando trivialmente da vida
das estrelas sem problemas financeiros, pessoas que
não existem; a sistemática degradação
da cultura popular, o empenho calculado em brutalizar e transformar
indiferença humana em sofrimento e prejuízo social.
Podemos dizer com certa justiça que o fato de que centenas
de milhões de africanos tem algum reflexo em apenas 42
filmes (que não são distribuídos em todo
continente) é uma desgraça, um vergonhoso estado
de relações sociais. Mas as centenas de filmes produzidos
na Índia, a maioria deles musicais medíocres, fazem
justiça para a vida da população? Ou, entrando
no mérito da questão, fazem as centenas de filmes
de Hollywood feitos anualmente, em larga escala, qualquer esclarecimento
substancial para a vida das pessoas Americanas?
O primeiro filme produzido na África Sub-Saariana não
apareceu até o cinema ter 70 anos de idade, em 1966. Nós
o revimos recentemente. Por experiência pessoal, posso dizer
que filme nenhum foi produzido inteiramente em Chad, país
Africano de tamanho considerável com uma população
de 10 milhões de pessoas até 1999, porque eu entrevistei
o diretor em Toronto, em 2000. Em um continente onde o anafalbetismo
é excepcionalmente alto, o cinema é um dos meios
fundamentais para que as pessoas vejam algo sobre suas vidas e
o mundo.
Um analista escreveu há algum tempo: Esperanças
e projeções de renovação política
e econômica e transformações sob a égide
dos programas de ajustes do Banco Mundial, medidas de liberalização
e quedas positivas esperadas, especialmente no setor da cultura,
atualmente se tornaram desastrosas. Produtores de filmes africanos
começaram a experimentar os dolorosos efeitos dos cortes
financeiros e a perda gradual tanto de fundos internacionais como
nacionais para a produção. Ao mesmo tempo, o lento,
mas sincronizado, desaparecimento de salas de cinema, uma das
mais tristes ocorrências da década de 90, começado
como uma privatização que possivelmente aumentaria
empreendedores locais, na verdade, converte esses locais em lugares
de comércio barato.
Quando as estatísticas da produção cinematográfica
consideram o mundo, costumam deixar a África
para fora do quadro. A população da África
e Oriente Médio combinadas acumularam 1.2% do total
de gastos do cinema mundial em 1998.
Um grande abismo social existe entre quem controla os meios
de produção culturais e camadas baixas da população
mundial. Mais que nunca, a profundidade da crise, a emergência
da situação atual, leva isto a ser explosivo demais
para ser tratado seriamente pela cultura oficial.
Trotsky escreve que o declínio da sociedade burguesa
significa um intolerável aprofundamento das contradições
sociais, que são transformadas inevitavelmente em contradições
pessoais, deixando claro, cada vez mais, a urgência de uma
arte libertadora. Consideramos crucial esse pensamento para
um maior entendimento da situação mundial atual.
O agravamento das contradições sociais, transformada
em contradições pessoais, produz uma necessidade
cada vez maior de uma arte libertadora. Esta necessidade é
respondida atualmente pela cultura oficial com níveis cada
vez maiores de desonestidade e insensibilidade.
Nós poderíamos olhar para Rússia e Leste
Europeu, onde a sociedade experimentou o começo de uma
outra organização, mas este novo organismo social
é um progresso ou uma terrível regressão?
A noção de que o capitalismo oferece um caminho
pode ser contestada por um simples olhar sobre as depressivas
e desmoralizantes condições da cultura e da arte
nesses países. O cinema russo se tornou em sua maior parte
histérico, pessimista, com trabalhos desumanos ou trabalhos
comerciais que imitam o pior da vulgaridade e brutalidade de Hollywood.
O teatro uma vez já foi o ponto máximo da vida
cultural na Polônia, o local de experimentos na década
de 60 e 70, incluindo o lendário Teatro Pobre
de Grotowski. Um analista recentemente escreveu que Varsóvia
está se dirigindo cada vez menos para o Teatro
Pobre, do que para um outro, brando, internacional e um
pouco improvisado, indistinguível daquilo de qualquer capital
provinciana.
Estas condições dominam o Leste Europeu, onde
as conquistas das artes foram devastadas e os princípios
mercadológicos restaurados. Caso uma vida artística
renasça, ela terá que adotar uma posição
de hostilidade em relação à mafiosa elite
capitalista.
Se capitalismo está crescendo e oferecendo um potencial
ilimitado, logo, como é possível que sua cultura
tenha falhado absurdamente em tratar artisticamente a situação
humana atual, e para estender como esta realidade é tratada,
e alguém vê alguma mudança de humor nesta
direção, isto é feito por uma oposição,
o aumento de um ponto de vista anti-capitalista?
Erich Auerbach, em seu trabalho Mimesis, um estudo da
representação da realidade na literatura ocidental
desde a antiguidade, descreve as bases do realismo moderno no
começo do século XIX, quando a sociedade experimentou
um genuíno nascimento, nas suas palavras: O sério
tratamento da nossa realidade cotidiana, a elevação
cada vez mais abrangente e socialmente dos grupos sociais inferiores
[classe operária, em outras palavras] para a posição
de objeto para a problemática-existencial da representação
está em uma mão; na outra, o envolvimento de pessoas
aleatórias e eventos no curso geral da história
contemporânea, o pano de fundo fluido da história...
E o que encontramos hoje? Praticamente o oposto exato desta
leitura.
Somos levados a perguntar: qual é o estado moral da
cultura global? Aqui as estatísticas não serão
suficientes.
Trotsky insiste, corretamente, que qualquer olhar mais concentrado
na vida deve inevitavelmente conter algum elemento de protesto.
Como não poderia ser, dadas as condições
em que a grande maioria das pessoas vive? A traumática
experiência política vivida pelo meio e final do
século XX teve sérias conseqüências:
abalaram a confiança do artista em uma alternativa fora
do capitalismo, desencorajaram-no a ter um olhar mais profundo
sobre a vida, e, quando houve alguma tentativa neste sentido,
estas acabaram acontecendo de forma difusa e confusa, desassociadas
da perspectiva histórica e política do socialismo.
Desde o final do século XIX, até as 2 primeiras
décadas do século XX, a arte pôde sentir relativa
confiança na existência de uma ampla oposição
à ordem existente, que poderia se desenhar intelectual
e moralmente, sustentando e encorajando a possibilidade de uma
mudança radical das relações sociais. Seria
totalmente impossível explicar a extraordinária
riqueza das tentativas criativas dessas décadas, descolando
a relação entre cultura e as idéias políticas
e organizativas revolucionárias.
Atualmente, fatores econômicos também se somaram
às dificuldades ideológicas. Ocorreu um enriquecimento
de considerável camada da intelectualidade (que, em sua
maioria, aceitou este enriquecimento de bom grado, dada a confusão
política e moral que prevalece). Nesse sentido, as condições
são um pouco parecidas com aquelas que Plekhanov descreve
no período pré-1914: a virada para direita e para
a indiferença política, após 1905, de boa
parte dos intelectuais russos.