A condenação de dois estudantes da Universidade
de São Paulo (USP) à prisão por causa de
uma manifestação política, em dezembro de
2006, foi a manifestação mais violenta da escalada
da repressão nas universidades brasileiras. Fatos similares
têm acontecido em várias universidades, mas esse
caso se destaca pela total arbitrariedade, e pelo fato de envolver
a mais importante universidade do país, onde há
poucos anos a polícia militar nem sequer intervinha.
Em agosto de 2005, Daniel Sene e Ilana Tschiptschin, ambos
estudantes de arquitetura, foram detidos pela Guarda Universitária
quando pintavam o asfalto em frente à Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, no maior campus da USP, em São
Paulo. A pichação, Brasília 17,
era um chamado para um protesto contra a corrupção
do governo Lula, que aconteceria no dia 17 de agosto na capital
do país, Brasília. Como se não bastasse ter
detido os estudantes, a Guarda Universitária levou-os imediatamente
a uma delegacia de polícia, onde eles foram interrogados
e passaram a noite numa cela.
No meio do ano passado (2005), Daniel e Ilana foram condenados
a três meses de prisão. A defesa apresentou um recurso
contra a decisão numa instância superior, mas no
dia 18 de dezembro (de 2006) o Tribunal de Justiça de São
Paulo decidiu manter a pena. Idibal Pivetta, advogado dos estudantes,
afirmou que vai recorrer novamente da decisão.
Pivetta, advogado histórico de presos políticos,
já foi presidente da União Nacional dos Estudantes
em 1958, durante a ditadura militar [de 1964 a 1985] defendeu
centenas de presos contra a repressão terrível daquela
época de terror, a maior parte deles estudantes e muitos
deles hoje políticos importantes da vida brasileira. Em
diversas declarações públicas, ele afirmou
que o fato da Guarda Universitária ter levado os estudantes
para a delegacia é uma verdadeira aberração
jurídica, e que o caso lembra de forma assustadora
os tempos negros da ditadura.
Disse o advogado Idibal: O caso do Daniel e da Ilana,
recente, de 2005, eu considero uma aberração jurídica,
uma aberração ética e moral. E mais
especificamente sobre a ação da Guarda Universitária,
disse ele: O que aconteceu no caso deles e que tem acontecido
em vários outros casos é que essa polícia
interna não age socialmente, ou culturalmente, ela age
arbitrariamente. Perguntado sobre como deveria ter agido
a Guarda Interna, Pivetta declarou: O que deveria ter sido
feito no caso deles era conversar com os acusados, levar essas
pessoas, ou convidá-las para ir até a prefeitura
[do campus] e lá a congregação ou os responsáveis
pela segurança tomariam ou não alguma providência,
assegurando a eles o direito de defesa total, amplo e irrestrito,
como é normal em outras universidades civilizadas. Mas
os seguranças da USP detiveram violentamente os dois e
os levaram para uma delegacia de polícia normal. Isso fere
todos os princípios da autonomia universitária,
do direito da universidade se reger a si própria.
Uma manifestação política dentro da universidade
deve ser tratada como ato social legítimo pela Guarda Universitária
e não como crime comum. Mas juridicamente isso torna-se
ainda mais grave pelo fato de os estudantes terem pintado apenas
o asfalto. Como não pintaram prédios da USP, Daniel
e Ilana não podem ser acusados por depredação,
e foram acusados por um crime estético-ambiental.
Ou seja, a única justificativa jurídica possível
para a condenação dos dois é que eles tornaram
a universidade mais feia. Ora, isso é uma clara
restrição à liberdade de manifestação
política, e equivale a dizer que se manifestar politicamente
na universidade é crime!
Quem devia estar no banco dos réus
é a Universidade de São Paulo!
Em sua argüição no Tribunal e em declarações
à imprensa, o advogado Pivetta comparou seriamente o caso
à repressão instaurada nas universidades pela ditadura
militar no fim dos anos 60. A atitude da USP, de querer
ter poder de polícia, faz a instituição regredir
ao período da ditadura militar. Um caso com tal baixa significância
de dano ser levado para a Justiça, eu só vi na época
da repressão militar, declarou à imprensa
e acrescentou: Quem devia estar no banco dos réus
é a Universidade de São Paulo!.
No mesmo sentido, em um recente evento de homenagem a antigos
ex-presos políticos da época da ditadura militar,
enquanto todos tratavam a repressão como um fantasma do
passado, Pivetta aproveitou a ocasião para homenagear em
tom de protesto os mais jovens presos políticos,
Daniel e Ilana.
Na verdade, mesmo durante a ditadura militar, a presença
da polícia na USP não era institucionalizada, era
apenas esporádica, mínima até, se comparada
à vigilância permanente existente hoje. Tanto é
assim que, quando a polícia militar entrava na universidade
isso era significativamente chamado de invasão.
Como declarou Pivetta em entrevista a estudantes: Mesmo
no tempo da ditadura, raramente houve invasões. Houve invasões
no caso do CRUSP [moradia estudantil], do restaurante universitário,
mas dificilmente a polícia política iria prender
dentro da universidade. Isso é uma arbitrariedade, isso
tem chocado todos os advogados de São Paulo e a opinião
pública que tomou conhecimento do caso.
Outro fato que não pode ser ignorado é que a
pichação realizada por Daniel e Ilana era um chamado
para um protesto contra a corrupção descarada do
governo Lula. No momento emergia uma profunda crise política
no país, logo após a revelação do
escândalo do mensalão, que envolvia os
principais nomes do governo petista em desvio de dinheiro público
e compra de parlamentares. Conforme diversos estudantes relataram,
nesse período (agosto de 2005), as manifestações
relacionadas à política nacional eram as mais duramente
reprimidas na USP. Havia uma orientação da
burocracia para arrancar os cartazes de protesto contra a corrupção
e contra o governo Lula. Esses cartazes eram arrancados rapidamente,
enquanto outros cartazes permaneciam, disse um estudante
também envolvido na manifestação, que prefere
não se identificar.
Burocratas universitários querem o fim
das liberdades democráticas na USP
A prisão e a condenação de Daniel e Ilana
não é um fato isolado. Durante todo o ano de 2006,
tomou força na USP um processo cada vez mais repressivo,
que já vinha se desenvolvendo nos últimos anos.
Foram aplicadas várias restrições às
atividades estudantis, principalmente às manifestações
políticas, e diversas medidas de segurança,
que estão acabando com a tradicional e histórica
liberdade dos estudantes dentro do campus.
A presença constante da Polícia Militar é
a mais grave delas, mas ao mesmo tempo, vários outros ataques
da burocracia e de professores reacionários se combinaram
ao longo dos últimos anos para massacrar a vida estudantil
na USP. A entrada passou a ser cada vez mais rigorosamente controlada,
os horários foram sendo restringidos, câmeras de
segurança estão sendo instaladas, panfletagens e
colagens de cartazes políticos são frequentemente
reprimidas, festas têm sido proibidas ou dificultadas sistematicamente,
os espaços livres das organizações estudantis
estão sendo retirados, e as punições aos
estudantes infratores se multiplicam.
Essa onda repressiva que, em algumas universidades mais e em
outras menos, atinge todos os estudantes, está diretamente
ligada à destruição da educação
pelo governo Lula, à privatização das universidades
públicas através de parcerias com grandes empresas
e bancos, à transferência de recursos públicos
para as universidades privadas através de programas governamentais,
às demissões em massa de professores nas particulares
e a iniciativas como o ensino à distância,
que não deixam dúvidas sobre para onde se encaminha
a educação: o caos do mercado capitalista.
Reduzir as universidades à mera formação
de mão-de-obra para o mercado de trabalho, e vincular totalmente
a produção de pesquisa aos interesses imediatos
do capital é a barbárie do capital tomando a cultura
e a universidade. A repressão policial, o cacete e a delegacia
garantem a implementação tranqüila do projeto
dos bancos e da privatização generalizada da cultura
e da ciência, contra os interesses da imensa maioria dos
estudantes e da população brasileira.